O Relógio Único.


                                     

O meu padrinho dizia-me que podíamos comparar o mundo a um relógio único.
Na verdade nunca entendi a verdadeira razão de ele o dizer, também acho que nunca tive real interessar de perceber aquele seu raciocínio filósofo, mas eu nunca esqueci as palavras dele.
Afinal um relógio? Como pode o mundo ser um relógio? Se o mundo é um relógio quem será o ponteiro das horas? E o relojoeiro? Bem, ele sabia que eu não entendi o porquê de ele dizer aquilo.
Certa noite, pelo meio das minhas músicas melancólicas, aquelas que fazem chorar mesmo sem motivo, lembrei-me do relógio, fiquei o resto da noite a pensar naquilo, finalmente ganhei coragem para perguntar ao meu padrinho como podia o mundo ser um relógio único.
Levantei-me com as galinhas, sentia necessidade de conhecer a resposta, agora fazia-me confusão todo aquele enigma.
Entrei na casa dele, é normal sentir aquele cheiro característico da casa dos avós, o cheiro a velho, o irremediável pó que habita nos objetos que são esquecidos pelo tempo, que nunca mais são mexidos, o cheiro a coisas paradas, o cheiros dos quartos inabitados, o cheiro aos mimos do avô, o cheiro das roupas dos velhinhos que mesmo que tenham de dizer o nome de todo os netos até acertarem no nosso, nós ama-mos de forma descomunal.
Abri a porta e andei pelo tapete, achei estranho não ouvir o assobio do meu avô, era o seu radio mais fiel, eramos capazes de assobiar juntos o dia todo, chamei por ele, chamei, em todos os recantos, ouvi o sino, por acaso olhei para o relógio, eram 10:17h o sino nunca toca a estas horas, chamei novamente mas desta vez “avô” já não saiu um som limpo como no inicio, vinha com soluços, batidas de coração sem controlo, senti as lágrimas caírem, era como se me corroessem a pele conforme escorriam pela cara.
Corri para o quarto, em cima de umas roupas engelhadas tinha um papel, peguei tava molhado, não era um molhado normal, eram lágrimas espalhadas pelo papel, lágrimas ás quais eu juntei as minhas, como podia eu segurá-las?

“ Sei que nunca entendeste o porquê que eu chamar ao mundo um relógio único, mas a resposta está mais próxima, a cada minuto mais próxima. Limpa as lágrimas meu rebento, espero por ti para voltarmos a assobiar juntos, mas promete-me que não terás pressa. Olha para cima? Consegues ver? Estou a sorrir para ti”

Foi o pior dia da minha vida.
Cheirei as roupas dele horas e horas seguidas, cheirei tanto que ainda hoje consigo sentir o cheiro sempre que me lembro dele. Guardei uma fotografia no bolso de trás das calças e voltei para casa, o sol para mim já tinha deixado de brilhar logo após se ter levantado, não havia estrelas, o céu estava escuro, não tão escuro como o meu olhar.
O sino voltou a bater, tive medo de olhar para o relógio outra vez, afinal tinha corrido tão mal, acabei por olhar, não consegui ver nada, quem consegue ver com os olhos inundados em água? Limpei-os, o relógio tinha parado nas 10:17h, foi então que encontrei a resposta.
Relógio Único? Claro que o mundo é um relógio único.
Quando compras algo único isso significa que se isso se estragar não haverá nada que o consiga consertar, tal como no mundo.
Percebi que todos nós podíamos ser o ponteiro das horas, dos minutos, ou até mesmo os números, mas alguma peça tínhamos de ser, cada peça tem a sua função especial, sendo o relógio único só havia uma peça, nada a poderia substituir.
O meu padrinho quis mostrar-me que todos nós estamos cá com um propósito e que todos nós somos únicos.
Vamos perdendo peças com o tempo, vão deixando de funcionar muitas coisas á nossa volta. Pensei que se calhar eu era o ponteiro dos segundos afinal nunca parava quieta, sendo assim preferia ter ido eu primeiro que o meu padrinho, o relógio funciona mesmo sem o ponteiro dos segundos.
Voltei a limpar as lágrimas e olhei outra vez para o relógio, lembrei-me que o relógio não era o meu, era o do meu padrinho, a pilha tinha acabado, continuava nas 10:17.
Foi então que reformulei a minha conclusão ao facto de o mundo ser um relógio único.
O meu padrinho estava certo, mas não totalmente certo, não é o mundo que é um relógio, somos nós.
Cada pessoa que ama-mos representa uma das pessoas do relógio, cada uma única, inigualável, imprescindível, que quando deixa de funcionar nada a pode substituir.
E nós? Nós somos a pilha, quando a pilha acaba o nosso relógio pára é então que voltamos para o relojoeiro, bem lá em cima.